top of page

Devaneios com Bartleby: “ Acho melhor não” - Tédio e Cansaço na Clínica

  • 4 de dez. de 2018
  • 9 min de leitura

Atualizado: 20 de abr. de 2020

Durante a minha graduação tive o privilégio de ser aluna da Professora Camila Pedral Sampaio (In Memorian). Não me lembro exatamente o título da disciplina, mas a questão da Pesquisa em Psicanálise era um eixo central de suas aulas. Com entusiasmo, Camila compartilhava ideias sobre a sua tese de Doutorado [1]. Na sua Clínica notava que a escuta de determinados pacientes evocava, em seus devaneios, personagens literários. Segundo ela, a observação dessa experiência havia inspirado a sua pesquisa. Comento aulas que se passaram há muitos anos. Posso não ser exata na minha descrição. De todas formas, ela me apresentava a Pesquisa nesse campo como um gesto profundamente sensível. Também realçava fenômeno fascinante: recorrer à ficção literária era o que a sua mente fazia para trabalhar.


Introduzo dessa forma esse texto e me surpreendo. Não imaginava assim iniciar a minha escrita. Como são incontáveis e como facilmente se tornam difusas as influências que forjam o nosso estilo de trabalho. Fico feliz em homenagear essa Professora. E se eu não tivesse escolhido aquela disciplina? (Seria opcional? Nem me lembro mais). Nos meus devaneios enquanto trabalho: caberiam os devaneios dela tornados meus? Explico-me: pensaria eu em personagens literários enquanto escuto na clínica o tédio e o cansaço? Afinal: me veria tão acompanhada por Bartleby- o Escrivão? Difícil responder...


" Acho melhor não" . Afinal o que nos transmite a mansa Rebeldia de Bartleby ? Depressão ou Compromisso com uma vida distinta?


Bartleby- O Escrivão é uma obra de Herman Melville. A história apareceu pela primeira vez, anonimamente, na revista americana Putnam's Magazine em 1853. Modesto Carone no Posfácio [2] descreve o enredo: “ Mas do que realmente trata a narrativa curta de Melville? Aparentemente, de quase nada. Um advogado de Nova York (o narrador que não se autonomeia) emprega o jovem Bartleby, mas este aos poucos decide que as tarefas de que é encarregado estão muito abaixo da sua competência e finalmente se recusa ao trabalho de escrivão e copista para o qual fora contratado. Depois de demitido pelo dono do escritório, não quer de forma alguma deixar o lugar (I would prefer not to). Perturbado com isso, o advogado finalmente se muda e Bartleby é levado à prisão (em inglês Tombs/ Túmulos) (p. 41) ”.


I would prefer not to / Acho melhor não” passa a ser tudo o que Bartleby tem a afirmar (ou a recusar?) a partir do seu 3º dia no emprego. Vale destacar que nos primeiros dias Bartleby trabalha avidamente e destaca-se como exímio copista... até que... “ Acha melhor não”. Afinal o enunciado refere-se à qual compromisso? Seria ao de uma afirmação de desejo (“ acho melhor não isso porque almejo coisa distinta”)? Ou trata-se da desistência lacônica e resignada? Convém pincelar a paisagem existencial que o livro retrata sobre seu personagem central: o confinamento no escritório em frente a uma “ janela que ... já não oferecia qualquer vista” e o cotidiano de gestos “vazios”: fazer cópias ou gerir Cartas Mortas (coisa que Bartleby havia feito anteriormente no Registro de Cartas Mortas em Washington).


Nesses últimos tempos tenho me impressionado com a frequência e intensidade em que Bartleby me vem à mente enquanto trabalho. Escuto vozes que compartilham que a vida “ vai bem”, que objetivamente existiria tanto para uma vida satisfatória; que haviam tantos projetos e buscas; que há tantas conquistas e realizações. Até que tudo deixou de fazer sentido. Até que coisa alguma gratifica.

Intrigo-me com as minhas associações. Nessas situações escuto um tédio sem nome, sem “ razões”: por que será que me levam à mansa rebeldia de Bartleby? São vozes que também parecem “ achar melhor não”... A força do enredo do livro tem a ver também com esse ponto de inflexão: do advogado perplexo em face do funcionário que tanto era e prometia até que passa a dizer não. Também capto esse misterioso “Turning Point ”: quando é que a vida perde a graça?


O Volume 51 da Revista Brasileira de Psicanálise em 2017 versou sobre o tédio. Ao abordar o assunto, um artigo de Adriana Meyer Gradin e Luís Claudio Figueiredo [3] faz menção ao Livro do desassossego de Fernando Pessoa : “ a ideia de viajar nauseia-me/ Já vi tudo o que tinha visto/ Já vi tudo que ainda não vi”. Já vi tudo que ainda não vi. Gosto demais desse verso. Penso que é muito penoso acompanhar a planta desidratada no meio do manancial. A vida repleta de possibilidades tolhida de cor, de sabor, de curiosidade. Ocorre-me que Bartleby brota em meus pensamentos porque estar perto da experiência do Tédio é muito difícil: temeria eu o papel do advogado no enredo, testemunha impotente para furar o mantra “ mortífero”?


Penso no meu próprio Tédio. Lembro da Sociedade do Cansaço [4] . O livro traz um capítulo denominado “ O tédio profundo” e um outro que trata justamente de Bartleby. Talvez a escuta também seja especialmente difícil pelas ressonâncias que retratam de nós e do mundo: de alguma forma nos dizem respeito também. Retomo a metáfora anterior e pergunto-me: será que a planta desidratada efetivamente pode sorver do manancial? Ou as águas estão contaminadas e o melhor a fazer é evitar as toxinas? A obra de Han realça uma Sociedade profundamente adoecida e destituída da sua condição de usufruir do seu caminho civilizatório no seu ímpeto de Desempenho e Performance. Para pincelar algumas passagens: “a técnica temporal de atenção multitasking (multitarefa) não representa nenhum progresso civilizatório. A multitarefa não é uma capacidade para a qual só seria capaz o homem na sociedade trabalhista e de informação pós-moderna. Trata-se antes de um retrocesso. A multitarefa está amplamente disseminada entre os animais em estado selvagem” (p. 31) ou ainda: “ Só o homem pode dançar ...comparada com o andar linear, reto, a dança, com seus movimentos revoluteantes, é um luxo que foge totalmente do princípio do desempenho” (p.35).


Retomo a homenageada do texto: lembro-me de Camila Pedral Sampaio transmitindo seu entusiasmo com o livro: “ Seis Propostas para o Próximo Milênio” de Italo Calvino. Segundo ela, essas ideias ofereceram nortes para a sua tese ao articular a literatura e a Clínica como Lócus do múltiplo, do errante, do devir. Na Sociedade do Cansaço, a Clínica representa a imensa possibilidade da pausa, da busca, do reconhecimento de esgotamentos. É uma travessia delicada. Talvez o seu maior legado foi me transmitir isso: a jornada é árdua, mas não estamos sozinhos nem tampouco desguarnecidos quando acompanhados das ficções que nos brotam. Talvez o manancial do qual falava seja esse: a terceira margem na clínica psicanalítica – título de sua tese.

[1] -Sampaio, C. P. "Ficção literária: terceira margem da clínica psicanalítica". Tese de doutoramento. Programa de doutoramento em psicologia clínica. PUCSP. São Paulo. 2000


[2] - Melville, Heman. Bartleby, o escrivão. São Paulo: Cosac Naify, 2005


[3] - Gradin, A.M e Figueiredo, L.C. “ Tédio. Três formas de manifestação na clínica psicanalítica” (2017). Tédio. Revista Brasileira de Psicanálise. V.53, 91-107


[4] Han, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.


Este texto também está publicado em Desha : https://coluna.desha.com.br/devaneios-com-bartleby-acho-melhor-nao-tedio-e-cansaco-na-clinica-valeria-lisondo/



Daydreaming with Bartleby: “I would prefer not to” – Boredom and Tiredness in the Clinical Practice


In my college studies, I had the privilege to be a student of Professor Camila Pedral Sampaio (In Memorian). I cannot recall the exact name of that subject, but the matter of Research in Psychoanalysis was in the core of her lessons. Camila enthusiastically shared her ideas about her PhD thesis [1]. In her clinical practice, she came to notice that listening to certain patients would cause her to daydream about literature characters. According to her, the very observation of those experiences had inspired her research. I am talking about lessons taught many years ago, so I may not be fully accurate in my description. Still, she introduced the research in that field as a deeply sensitive gesture. She also called our attention to a fascinating phenomenon: her mind had found in literary fiction a way to work.


I am caught by surprise as I write this introduction, because I had never imagined beginning my writing like that. The influences that shape our way of working are countless and those memories can fade away easily. I am glad to pay a tribute to that Professor. What if I had not chosen that subject? (Was it optional? I cannot recall). As I work, I daydream: had her reveries become mine? Allow me to explain that: would I think about literature characters while I hear about boredom and tiredness in my clinical practice? After all, would I be in the company of Bartleby, the Scrivener? Tough question.


Bartleby, the Scrivener is a piece by Herman Melville. Its story was first published in 1853, as an anonymous work in Putnam's Magazine. In his afterword [2], Modesto Carone describes the plot: “But what is Melville’s brief narrative actually about? Apparently, not much. A New York attorney (a narrator whose name is not revealed) hires the young Bartleby, who comes to decide that the tasks assigned to him are below his competence and finally refuses to perform the scrivener/copyist activities for which he was contracted. After being dismissed by his employer, he is unwilling to leave the place (“I would prefer not to”). Disturbed by the fact, the attorney eventually moves out and Bartleby is taken to prison (to the “Tombs”, p. 41). 41) ”.


“I would prefer not to” is now all Bartleby has to affirm (or to refuse?) after his third day at work. It is worth highlighting that, on his first days, Bartleby works with enthusiasm and stands out as a skillful copyist… until he “would prefer not to”. To which commitment does the sentence refer? Would it be a declaration of desire (“I would prefer not to because I wish otherwise”)? Or is it a laconic, acquiescent withdrawal? It is appropriate to mention the existential landscape that the book portrays of its main character: the confinement in an office whose window “commanded at present no view at all” and a routing of “empty” gestures: making copies or handling Dead Letters (as he had done previously at the Dead Letter Office in Washington).


I have been amazed by the frequency with which Bartleby come to my mind as I am working. I hear voices claiming that life “is going well”, that so much should result in a satisfying life; that accomplishments are plentiful… And then everything stopped making sense. And then something is gratifying.


I am intrigued by my associations. In such moments, I hear an unnamed, “unjustified” sort of boredom: why do they lead me to the Bartleby’s meek defiance? Those voices also seem to “prefer not to”… The power in Melville’s narrative is also related to this turning point: the bewildered attorney in the face of an employee who was once so promising and then began to say no. I sense a mysterious turning point of a similar nature: how does the joy wane away in life?


In 2017, the Volume 51 of the Brazilian Psychoanalysis Magazine focused on boredom. In its approach to the subject, an article by Adriana Meyer Gradin and Luís Claudio Figueiredo [3] quotes The Book of Disquiet, by Fernando Pessoa: “The idea of travelling nauseates me./ I’ve already seen what I’ve never seen./ I’ve already seen what I have yet to see”. I have already seen what I have yet to see. I am very fond of that verse. I believe it is distressing to observe a dehydrated plant in a fountainhead. A life so full of possibilities and yet deprived from color, taste, curiosity. It comes to me that Bartleby springs to mind because being close to the experience of boredom is difficult: would I fear the role of the attorney, a powerless witness unable to cease the “deadly” mantra?


I think about my own boredom. It reminds me of The Burnout Society [4]. That book has a chapter called “Profound Boredom”, and another called “The Bartleby Case”. Perhaps listening is also particularly difficult in face of its resonances that portray the world and ourselves: they are somehow about us as well. Back to our metaphor, I ask myself: can the dry plant effectively enjoy the fountainhead? Or maybe the water is contaminated and it is wise to avoid the toxins? Han’s work depicts a profoundly ill society, bereft of its condition to enjoy its civilization path in its urge for performance. Some highlights: “the attitude toward time and environment known as "multitasking" does not represent civilizational progress. Human beings in the late-modern society of work and information are not the only ones capable of multitasking. Rather, such an aptitude amounts to regression. Multitasking is common-place among wild animals” (p. 12) or: “Only human beings can dance.(…) Compared with linear walking, straight ahead, the convoluted movement of dancing represents a luxury; it escapes the achievement-principle entirely” (p. 14).


As for my Professor, I recall her enthusiasm regarding the book “Six Memos for the Next Millennium”, by Italo Calvino. According to her, those ideas helped to guide her thesis by linking literature and clinical practice as a Locus for the multiple, the wandering, what is to come. In the Society of Tiredness, our clinical practice represents a great possibility for pausing, searching, acknowledging exhaustion. It is a delicate journey. Maybe that was her greatest legacy to me: it is a rough path, but we are neither alone nor unprovided for when we have the company of the fictions that come to our minds. Maybe that is the fountainhead I mentioned earlier: the third margin in psychoanalytical clinical practice (the title of her thesis).


[1] -Sampaio, C. P. "Ficção literária: terceira margem da clínica psicanalítica". Tese de doutoramento. Programa de doutoramento em psicologia clínica. PUCSP. São Paulo. 2000

[2] - Melville, Heman. Bartleby, o escrivão. São Paulo: Cosac Naify, 2005

[3] - Gradin, A.M e Figueiredo, L.C. “ Tédio. Três formas de manifestação na clínica psicanalítica” (2017). Tédio. Revista Brasileira de Psicanálise. V.53, 91-107

[4] Han, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.


Translation: Jamila Maia


Комментарии


bottom of page