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Sobre paciência, morada e transmissões

Atualizado: 12 de fev. de 2019

“Tudo que não invento é falso” Manoel de Barros

É de paciência que se faz o ofício da clínica. É de compromissos sofisticados: por um lado a exigência com os conhecimentos; leituras; estudos. Por outro a lúcida consciência da nossa limitação para absorver a profusão de autores; teorias e modelos. Ainda: a radical noção que nossos próprios pontos cegos incidem nessa condição de vir-a-ser esse artesão, essa artesã.


Ter um consultório: não se trata apenas de um recurso para trabalhar. Envolve a arte de habitar esse ateliê do sensível. O conforto com matérias-primas e transformações tão sutis e invisíveis: ruído; escuta; silêncio; vertigem… A disponibilidade para deixar-se afetar. A condição de acolher o risco. Afinal: mapas não são territórios… a vida como ela é na clínica desafia. Por melhores que sejam nossas bússolas e representações… Será essa uma metáfora feliz? Não há bússolas nem mapas disponíveis no nosso caso. Melhor dizendo: há inúmeros. Acontece que é laboriosa essa escolha e composição. Porque tais referenciais precisam ser metabolizados por nós. Só assim podem oferecer alguma serventia.

É de paciência que se faz o ofício da clínica porque leva tempo escolhermos e sermos escolhidos pelos recortes; teorias; autores que nos dizem respeito. É um ofício também de certo caos; uma vez que são misteriosos e talvez não completamente acessíveis- lineares esses caminhos. É um ofício de abertura porque tal empreitada não se encerra.



A delicada arte de exercer uma Presença-Reservada no processo de terapia


Percebo que fiz um longo preâmbulo. Pareceu-me oportuno. Iniciei anteriormente o texto da seguinte forma: “há anos me acompanham questões sobre a transmissão; sobre heranças; sobre o desafio de acomodar a oferta de um dado legado e relação de pertença com a criação de uma marca própria; autoral e distinta”. Não é uma descrição acurada. Por isso quis acrescentar que há anos estamos às voltas com muitas buscas; leituras; experiências; tropeços; suspensões. Paciência. Até que descobrimos – ou seríamos achados? – por questões para chamar de “nossas”.


Na exploração dessa pergunta, muitos são os autores e referenciais que proporcionam ricas reflexões. No entanto, gostaria de aqui deter-me na noção de: “Presença- Reservada”/ “ Presença- Implicada” explorada na obra: “Ética e Técnica em Psicanálise” de Figueiredo e Coelho Jr (2008). Os autores destrincham a dimensão do Ethos (morada; modo de ser) articulando-a com o exercício da “Técnica”. Nesse percurso lançam luz no ser e fazer clínico: trata-se de sustentar a dialética entre implicação e reserva. Sublinham que tal empreitada não corresponde à uma recomendação / instrução a ser seguida. Tem a ver, antes, com a possibilidade de assumir um lugar precário por excelência. É a condição da Ética: são palafitas frágeis e em suspensão os alicerces de nossas moradas.

A clínica assim compreendida envolve uma afinação muito precisa com a dinâmica da Transferência; ambiência e tempos do processo. Resulta em não ser invasivo (a) nem ausente/omisso (a) para àquilo demandado no processo analítico. Esse estado de arte envolve conter nossos impulsos de ” furor curandis”; acolher nossas ignorâncias; atentar para vaidades ao precipitar o que seria conveniente manter suspenso. Envolve também a intervenção que se faz presente quando assim beneficia o avanço do trabalho. Segundo a obra, é o que está em jogo também na supervisão: ser suficientemente reservado para não ofuscar os saberes e sensibilidades do (a) psicólogo (a) que busca ajuda e interlocução. Ser suficientemente presente e continente para intervir e oferecer os elementos pertinentes na singularidade de cada caso e intercâmbio.


Retomo minhas questões. Que inicialmente não se voltavam à discussão propriamente dita da Ética e Técnica em Psicanálise. Acontece que a noção de Presença-Reservada/ Presença- Implicada também elucida devires da Transmissão. Sabemos que o ser humano vem ao mundo em condição de extrema dependência. Vir a ser um sujeito depende de muito investimento na condição de oferecer maciça presença-implicada quando assim é necessário e edificante. Assim como vir a ser um sujeito capaz de imprimir a sua marca própria; autoral; inédita envolve muito investimento na condição de criar e encontrar salutar distância e reserva no ambiente. Bem como licença interna para essa travessia própria e intransferível- ou seja, muita reserva em si mesmo.

“Reservada- Presença-Implicada” se faz conceito vivo e tangível nos seus mistérios nas lentes de Guimarães Rosa. ” A Terceira Margem do Rio” é o conto que apresenta essa singular capacidade: o pai que se retira e não desaparece. A dialética assegurada na manutenção de distâncias e proximidades: Reservada-Implicação. A angústia que também é amplitude nesse movimento. A discriminação entre a vida de um e a vida de outro: destinos e jornadas que têm muito em comum. E muito de diferente. ( Sugiro escutar a Professora Yudith Rosenbaum no breve vídeo sobre o conto).

Referências Bibliográficas:


FIGUEIREDO, L. C.; COELHO JUNIOR, N. E. Ética e Técnica em Psicanálise. São Paulo: Escuta, 2008.

ROSA, J. G. A terceira margem do rio. In. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988

Este texto também está publicado em Desha: https://coluna.desha.com.br/sobre-paciencia-morada-e-transmissoes-valeria-lisondo/


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